sábado, 5 de junho de 2010

Marília de Dirceu - Tomás Antônio Gonzaga

Fragmentos do Poema Lírico

MARÍLIA DE DIRCEU

Não sei, Marília, que tenho,
depois que vi o teu rosto, 
pois quando não é Marília
já não posso ver com gosto.
Noutra idade me alegrava,
até quando conversava
com o mais rude vaqueiro:
hoje, ó bela, me aborrece
indo a trato lisonjeiro
do mais discreto pastor.
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de amor?
Saio da minha cabana
sem reparar no que faço;
busco o sítio aonde moras,
suspendo defronte o passo.
Fito os olhos na janela;
aonde, Marília bela,
tu chegas ao fim do dia;
se alguém passa e te saúda,
bem que seja cortesia,
se acende na face a cor.
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de amor?

Se estou, Marília, contigo,
Não tenho um leve cuidado;
Nem me lembra se são horas
De levar à fonte o gado.
Se vivo de ti distante,
Ao minuto, ao breve instante
Finge um dia o meu desgosto;
Jamais, pastora, te vejo
Que em teu semblante composto
Não veja graça maior.
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de amor?
(...)

Vou retratar a Marília,
a Marília, meus amores;
porém como Se eu não vejo
quem me empreste as finas cores:
dar-me a terra não pode;
não, que a sua cor mimosa
vence o lírio, vence a rosa,
o jasmim e as outras flores.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os astros, voa,
Traz-me as tintas do céu.
Mas não se esmoreça logo;
Busquemos um pouco mais;
Nos mares talvez se encontrem
Cores que sejam iguais.
Porém, não, que em paralelo
da minha ninfa adorada
pérolas não valem nada,
não valem nada os corais.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os astros, voa,
Trazer-me as tintas do céu.
Só no céu achar-se podem
tais belezas como aquelas
que Marília tem nos olhos,
e que tem nas faces belas;
mas às faces graciosas,
aos negros olhos, que matam,
não imitam, não retratam
nem auroras nem estrelas.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os astros, voa,
Traze-me as tintas do céu.

Entremos, Amor, entremos,
entremos na mesma esfera;
venha a deusa de Citera.
Porém, , não, que se Marília
no certame antigo entrasse
bem que a Paris não peitasse,
a todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vã socorres
Ao mais grato empenho meu:
Para formar-lhe o retrato
Não bastam tintas do céu.
(...)

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guarda alheio gado,
De tosco trato de expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais finas lãs de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte:
Dos anos inda não está cortado;
Os pastores que habitam este monte
Respeitam o poder do meu cajado.
Com tal desprezo toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste
Nem canto letra, que não seja minha.
 Graças, Marília Bela,
Graças à minha estrela.
Mas tendo tantos dotes da ventura,
Só apreço lhes dou, gentil pastoras,
Depois que o teu afeto me segura
Que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
De um rebanho que cubra monte e prado;
Porém, gentil pastora, o teu agrado
Vale mais que um rebanho e mais que um trono.
          Graças, Marília bela,
          Graças à minha estrela!
Leve-me a sementeira muito embora
o rio sobre os campos levantado:
acabe, acabe a peste matadora;
sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso:
nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
para viver feliz, Marília, basta
que os olhos movas e me dês um riso
Graças, Marília bela,
Graças a minha estrela!
(...)

Eu, Marília, não fui algum Vaqueiro,
Fui honrado Pastor da tua aldeia;
Vestia finas lãs e tinha sempre
A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal, e o manso gado,
Nem tenho a que me encoste, um só cajado.
para ter que te dar, é que eu queria
De mor rebanho ainda ser o dono;
Prezava o teu semblante, os teus cabelos
Ainda muito mais que um grande Trono.
Agora que te oferte já não vejo
Além de um puro amor, de um são desejo.
(...)
Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos prazeres e desgraça.
Estão os mesmos Deuses
Sujeitos ao poder do ímpio Fado:
Apolo já fugiu do Céu brilhante,
Já foi pastor de gado.
A devorante
mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte:
(...)
Ah! Enquanto os Destinos impiedosos
Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim, façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
(...)
Nesta triste masmorra,
De um semivivo corpo sepultura,
Inda, Marília, adoro
A tua formosura.
Amor na minha idéia te retrata;
Busca, extremoso, que eu assim resista
A dor imensa, que me cerca e mata.

quando em meu mal pondero
Então mais vivamente te diviso:
vejo o teu rosto e escuto
A tua voz e riso.
Movo ligeiro para o vulto os passos:
Eu beijo a tíbia luz em vez de face.
E aperto sobre o peito em vão os braços.

Conheço a ilusão minha;
A violência da mágoa não suporto;
Foge-me a vista e caio
Não sei se vivo ou morto.
Estremece-me Amor de estrago tanto;
Reclina-me o peito e, com mão terna.
Me limpa os olhos de salgado pranto.
Depois que represento
Por largo espaço a imagem de um defunto,
Movo os membros, suspiro,
E onde estou pergunto.
Conheço então que Amor me tem consigo;
Ergo a cabeça, que inda mal sustento,
E com doente voz assim lhe digo:
- Se queres ser piedoso,
procura o sítio em que Marília mora,
pinta-lhe o meu estrago,
e vê, Amor, se chora.
Se a lágrima verter a dor a arrasta,
Uma delas me traze sobre as penas,
E para alívio meu só isto basta.

[Tomás Antônio Gonzaga]

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